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Consciência de Campo e Ética de Campo

Renée Weber

Extraído de "O Paradigma Holográfico", Ken Wilber, Cultrix, 1995 (esgotado)



A teoria de Bohm revela uma notável cosmologia. Talvez não menos notá­vel que seu conteúdo seja a sua proveniência, um físico. Em nossa época de compartimentalização profissional, surge a questão: por que um eminente físico teó­rico, com uma reputação científica em jogo, devota-se à exploração da consciên­cia? Uma abordagem abrangente e enfática da visão de Bohm acerca do universo traz luz a essa questão.

Seu contacto com a filosofia indiana, em especial com o sábio hindu Krishnamurti, convenceu-o de que o pensamento, a forma de consciência que nos é mais familiar e na qual habitualmente funcionamos, corrompe a realidade. A velha es­perança da metafísica e da física, de que o pensamento pudesse revelar a reali­dade, está necessariamente condenada. O pensamento é uma habilidade reativa e não ativa, sintonizando apenas parcialmente o homem com a natureza, e dis­torcendo a maior parte dela. O pensamento é uma espécie de consciência fossi­lizada, operando dentro do “conhecido” e, desse modo, por definição, não é criativo. A realidade ou aquilo que é fundamental (Bohm não iguala os dois, mas qualquer esclarecimento sobre isso está além da alcance deste artigo), as inves­tigações de Bohm o convenceram disso, é algo sempre novo. Trata-se de um pro­cesso vivo. Uma vez que o pensamento está limitado pelo tempo, não pode apreen­der aquilo que se encontra além de um arcabouço finito espaço-temporal.

Bohm só admite com relutância as teorias de outros pensadores em suas discussões, insistindo em elaborar novamente a resolução de um determinado problema sem se apoiar no passado. Não obstante, ele admite que há paralelos entre suas concepções e as de certos filósofos do passado. Um exemplo caracte­rístico é o de Platão, cuja Alegoria de Caverna (República, VII) apresenta sur­preendente coerência com a cosmologia de Bohm. Quando incitado, Bohm con­corda com a correlação entre a caverna de Platão e a ordem explicada, e tam­bém com a correlação entre a metáfora da luz em Platão e a ordem implicada. Tanto a luz de Platão (Sol) como a ordem implicada de Bohm só podem ser apreen­didas através de insight, ambas se acham além da linguagem, e ambas são inaces­síveis exceto para indivíduos dispostos a sofrer uma mudança vigorosa e decidida. Os domínios que Bohm caracteriza como estando “infinitamente além” até mes­mo da ordem implicada — a saber, verdade, inteligência, insight, compaixão — são comparáveis aos princípios fundamentais de Platão: verdade, beleza, o bem, a unidade.

Outras tradições históricas vêm à mente. No mundo ocidental, Plotino, Leibniz e Spinoza; no Oriente, Buda, Shankara e a Jnana ioga. Esta, cuja afinidade com Krishnamurti e Bohm é notável, é a ioga do discernimento e da discrimina­ção. Ela evita a metafísica e a religião exotérica, o ritual e os sistemas de símbolos em favor de um puro estado de percepção atenta e livre de arcabouços ou filtros. É conhecida na tradição como “a via que sobe direto pelo lado da montanha”, e é considerada a via mais direta e difícil que existe. Diz-se que somente muito poucas pessoas estão propensas a satisfazer suas exigências ou são capazes de realizar tal façanha. De acordo com aqueles que nos deixaram o relato de suas experiências, seu ponto mais alto é o silêncio. Desse modo, Meister Eckhart (para recorrermos a uma fonte inesperada) afirma que “não há nada em todo o uni­verso mais semelhante a Deus que o silêncio”, e junta essa descoberta à meto­dologia: “Por que você tagarela a respeito de Deus? Não sabe que tudo o que você diz é falso?”

Além dessas poucas observações, devemos deixar a tradição para trás. Em­bora possa apresentar interesse histórico e psicológico unirmo-nos a outros ex­ploradores dessa quietude fecunda, ficar agarrado ao passado é um obstáculo e uma traição ao momento vivo recém-criado, para onde se dirige o foco total de Bohm. Por mais interessantes que possam ser os filósofos ou os sistemas que al­guém introduza numa discussão com ele, Bohm, firmemente, os reduz a um mí­nimo e traz o assunto de volta ao presente, a este momento. É seu compromisso com essa manifestação viva da realidade, momento-a-momento, que une seu tra­balho em física a seu interesse pela consciência.

A desintegração do átomo só pode ocorrer no presente e sempre pode ocor­rer de novo. A analogia do átomo com o pensamento, e com um suposto pen­sador que produz o pensamento, é crucial. O pensador assemelha-se ao átomo, que permanece coeso ao longo do tempo graças à sua energia de ligação. Quan­do a energia de ligação do átomo físico é liberada num acelerador, a energia re­sultante, vertiginosamente grande, fica livre. Analogamente, são necessárias enor­mes quantidades de energia de ligação para criar e sustentar o “pensador”, e para manter sua ilusão de que ele é uma entidade estável. Essa energia, estando “amar­rada”, é indisponível para outros propósitos, forçada a prestar serviço àquilo que Bohm chama de “autofraude” (self-deception) (fenômeno descrito em de­talhe por Buda como ignorância, avidya, que significa, literalmente, “não ver”). O pensamento, ou o que Bohm denomina mente tridimensional, acreditando-se, equivocadamente, autônomo e irredutível, requer e, por isso, dissipa vastas quan­tidades de energia cósmica nessa ilusão. A energia que, desse modo, pré-desemboca nessa via não pode fluir por outros canais. A conseqüência disso é uma ecolo­gia cósmica insalubre, que polui o holomovimento em pelo menos duas direções destrutivas. Primeiro, o holomovimento ilude a si mesmo, escolhendo a ficção em vez do fato, e por isso se escraviza. Segundo, o holomovimento se dilacera, substituindo o eu isolado pela consciência da humanidade, numa abstração ali­cerçada no sofisma, escravizando outros por meio de sua ira, de sua ganância, de sua competitividade e de sua ambição. O resultado desses dois passos erra­dos é um mundo de sofrimento pessoal e interpessoal.

O primeiro desses passos errados, a ilusão de um ego, de um eu pessoal ou pensador, acha-se intimamente relacionado ao tempo e à morte. Sejamos claros. O pensador, não a consciência, é limitado pela morte. Esta, de acordo com esses pontos de vista, consiste precisamente na desintegração atômica psicológica des­crita acima e não é, necessariamente, um sinônimo da dissolução do corpo fí­sico (como observaram muitos autores em seus relatos sobre a tradição esoté­rica). A morte psicológica ocorre quando a consciência caminha em compasso com o presente, que está sempre em movimento e se auto-renovando, e não per­mitindo que nenhuma parte de si mesmo seja aprisionada nem fixada como ener­gia residual. É a energia residual que proporciona o arcabouço para aquilo que se tornará o pensador, o qual consiste em experiências não-digeridas, isto é, não assimiladas nem ordenadas pela mente, em memórias, padrões do hábito, iden­tificações, desejos, aversões, projeções e fabricação de imagens. Não se trata de um processo puramente pessoal mas sim da energia de eons de tais processos esclerosados com o passar do tempo, persistindo tanto em nível pessoal quanto coletivo. A morte do ego desmantela essa superestrutura, deslocando-a para seu lugar correto nos bastidores de nossas vidas, em vez de dominar e desordenar o palco, como atualmente acontece. Bohm argumenta que tal movimento re­quer maior adaptação biológica não reduzida, bem como saúde, e não deve nos ameaçar. Pelo contrário, a “morte” assim concebida é, na verdade, a sua nega­ção, conduzindo-nos ao eterno presente, além do alcance da morte.

Nosso segundo ponto refere-se à ética. Ao longo dos séculos, o pensador tagarela a respeito de absolutos inquestionavelmente nobres — Deus, consciên­cia cósmica, inteligência universal ou amor — mas o domínio onde habita diaria­mente permanece destrutivo e caótico. Isso não nos deve surpreender. A quali­dade tridimensional do pensamento bloqueia necessariamente a própria expe­riência da realidade vivenciada pelo pensador, e sobre a qual, durante séculos, ele fala usando palavras ocas. é a incomensurabilidade substantiva e lógica, e não a má vontade nem o esforço insuficiente, que responde por isso. O não-manifesto, como Bohm meticulosamente argumenta, é n-dimensional e atemporal, e não pode ser manipulado, seja como for, pelo pensamento tridimensional. A consciência, funcionando como pensamento (ao contrário do insight) não pode conhecer de imediato a verdade ou a compaixão, e nisso reside a raiz de seu ma­logro em incorporar essas energias à sua vida diária.

Somente quando o indivíduo dissolve o ego tridimensional, que consiste em matéria grosseira, a base de nossa existência pode jorrar através de nós, sem obstrução. Para um físico teórico, o paralelo desse estado de coisas com a me­cânica quântica é evidente, Bohm estende sua aplicabilidade à psicologia, inci­tando-nos à dissolução do pensador como a mais alta prioridade que pode ser empreendida por aquele que busca a verdade. Com essa concepção, ele oscila margeando a fronteira daquilo que é culturalmente aceitável, na interface entre a física e a religião. É um terreno estranho, uma vez que nossa cultura atual, ca­recendo de qualquer conceito concebível para explicá-lo, rejeita um tal vínculo como algo confuso, e até mesmo absurdo. Entretanto, por mais estranha e iné­dita que possa ser, essa integração é justificada pelo modelo de Bohm, segundo o qual o universo é um holomovimento. O desmantelamento do pensador pro­duz energia que é qualitativamente carregada, não-neutra ou isenta de valor. É energia livre e fluente, caracterizada pela totalidade, pela n-dimensionalidade e pela força da compaixão. A física e a ética tomam-se também uma só nesse processo, porque a energia do todo [whole] está, de certa forma, intimamente relacionada com aquilo que chamamos de santidade [holiness]. Em resumo, a própria energia é amor.

À desintegração atômica aplicada à consciência Bohm e Krishnamurti dão o nome de “percepção (ou consciência) atenta” (awareness). Tal processo pro­porciona à consciência acesso direto àquela energia, e a conduz à certeza expe­rimental, baseada na evidência, de que a suprema natureza do universo é uma energia de amor. Os místicos proclamaram isso a uma só voz. O que é surpreen­dente é o fato de um físico contemporâneo interessar-se por tal teoria e pelo seu método. Naturalmente, é verdade que, em muitos aspectos, os objetivos do místico coincidem com os do físico, isto é, o contacto com o que é fundamen­tal. Mas há uma diferença crítica. A desintegração do átomo é um empreendi­mento dualista; o físico (sujeito) trabalha sobre um objeto que se supõe estar fora dele. A mudança do objeto não modifica fundamentalmente o sujeito. Por outro lado, a desestruturação do pensador envolve necessariamente o próprio operador ou experimentador, porque é ele o objeto-de-teste em questão, o agente transformador e, ao mesmo tempo, o paciente, que sofre a transformação. Daí a resistência, o caráter árduo e a grande raridade de tal evento.

Embora raro, isso ocorre, e conforme se sugeriu acima, Bohm associa sua realização à ética. A desintegração de átomos psicológica despolui o que incon­táveis aglomerados egóicos ilusórios (análogos a espasmos que reduzem o fluxo dentro do todo) poluíram com seu mau posicionado sentido de separatividade e suas prioridades mantidas pelo ego, resultando em sofrimento universal. O desintegrador de átomos psicológico coincide, desse modo, com o santo, que não mais contribui para o sofrimento coletivo da humanidade mas, em vez disso, tor­na-se um canal para a ilimitada energia da compaixão. A consciência torna-se um conduto alinhado com a energia do universo, irradiando-a para o mundo hu­mano e das criaturas sem distorcê-la ou desviá-la para seus próprios objetivos autocentralizados.

Curiosamente, a despeito da convicção de Bohm de que é esse o estado de coisas verdadeiro e desejável, que o nosso conhecimento simplesmente ainda não alcançou, ele reluta em discuti-lo a não ser através de breves alusões. Sua ênfase está na metodologia do processo de autodescondicionamento, e não na terra prometida que se encontraria no fim desse processo. Sua justificativa para isso é simples. Em seu estado condicionado, a mente, seja como for, nada mais pode fazer exceto traduzir o que é incondicionado para padrões condicionados e, desse modo, ela perde a essência daquilo que procura. Fiel ao credo da ciência, Bohm apóia-se em provas experimentais, e não verbais. A conseqüência desse posicionamento é estranha, e até mesmo bizarra. Coisa alguma pode rivalizá-lo no domínio do conhecimento, nem mesmo o ardiloso paradoxo da mecânica quântica. Em certo nível, ele parece estar em disparidade com nossa constitui­ção psicológica, pois até mesmo aqueles em que há pleno acordo intelectual com essa concepção acham difícil enfrentá-la no nível existencial de suas vidas, co­mo qualquer pessoa que tenha vivenciado os ensinamentos de Krishnamurti ates­tará. O que é esse paradoxo? Apenas isto: quanto mais falamos a respeito da “ver­dade”, ou mesmo pensamos sobre ela, para mais longe de nós mesmos a afasta­mos (a analogia com o Princípio da Indeterminação de Heisenberg é óbvia). É o eu o pensador, o criador do pensamento a respeito do sagrado ou de Deus que, nesse próprio ato, introduz as impurezas (tempo, self, linguagem, dualismo) e, desse mo­do, anuvia aquilo que de outra maneira seria imaculado (o próprio Kríshnamurti usou essa palavra nesse contexto, numa conversa que tivemos em Ojai, em 1976). Dificilmente se poderia considerar esse reconhecimento como algo novo, mas sua articulação só raras vezes foi formulada com eloqüência tão sincera co­mo a que se encontra no tom e na linguagem de Kríshnamurti ou expressa com a clareza de Bohm. Não precisamos, de fato, perambular até muito longe. Kant nos vem à mente. Já no final do século XVIII, ele insistia em nossa impossibili­dade — fundamentada na lógica ou nas leis do pensamento e, desse modo, cons­tituindo um obstáculo que não é possível superar — de ter acesso à experiência do que é fundamental. Kant deu a esse domínio o nome de coisa-em-si, isto é, aquilo que Krishnamurti e Bohm chamam de inteligência ou compaixão (Buda, o dharma, e Platão, “o bem”). Kant liquidou a metafísica demonstrando cuida­dosamente, na Crítica da Razão Pura, que tudo o que é pensável e nomeável deve, necessariamente, conformar-se com a estrutura inerente da mente: espaço, tem­po, qualidade, quantidade, casualidade, etc. As categorias kantianas são aquelas às quais Bohm se refere como sendo o domínio da tridimensionalidade, com a distinção de que este último é mais amplo, abrangendo a emoção, a vontade, a intenção e outras qualidades psicológicas, bem como cognitivas. Todas essas qualidades dizem respeito ao mundo da experiência sensível (a ordem manifesta ou explicada, na linguagem de Bohm), e respondem pela nossa aptidão para fun­cionar no domínio fenomênico. Nessa dimensão, não temos outra escolha a não ser filtrar aquilo que é através do aparelho de percepção universal descrito acima. Nossa capacidade para a tradução é útil quando adequadamente empregada (isto é, biologicamente, ou em certas atividades práticas da vida diária). Fazer isso, no entanto, custa-nos um alto preço, como Kant compreendera. Uma vez que o númeno, ou coisa-em-si, não é capaz de ser apanhado na nossa rede, perma­nece imperscrutável para nós. O conhecimento, tanto para Kant como para Bohm, é o processo de sintonizar a manifestação (o fenômeno) do não-manifesto, a fim de torná-lo acessível a criaturas estruturadas da maneira como somos. Esse filtro e a conseqüente distorção acham-se “embutidos” em nós e são universais. Por definição, a coisa-em-si nunca pode aparecer-nos como seria sem a nossa ação de “sintonizá-la” com nosso aparelho de recepção finito.

Aqui os caminhos se separam. Krishnamurti, Bohm e toda a tradição mís­tica concordam com a análise de Kant referente à experiência fenomênica. No entanto, eles avançam além de Kant, para proclamar a possibilidade de um estado de consciência que se encontra fora dessas barreiras. Para Kant, cujas concepções sobre o assunto foram aceitas como definitivas pela filosofia ocidental, nenhuma outra capacidade acha-se disponível em nós à qual possamos recorrer para alcançar o númeno, Bohm e os outros que mencionamos sustentam que essa capacidade existe no universo, e que, estritamente falando, ela não se encontra em nós. O desafio para o local individual de consciência está em fornecer a condição que permite à força universal fluir através dele sem obstáculo. O resultado não é co­nhecimento, no sentido kantiano, mas compreensão e percepção atenta, um es­tado de percepção direta e não-dualista para o qual Kant não fez nenhuma pro­visão e não possuía nenhum vocabulário. Sua precondição é o estado de vazio, como Bohm insiste repetidas vezes, estado esse que acarreta uma suspensão das categorias kantianas e do espaço-tempo tridimensional. Tal vacuidade leva à cessação da consciência considerada como aquele que conhece e nos transforma num instrumento que, receptivamente, permite à inteligência numênica operar através de nós, irradiando sobre nossas vidas cotidianas. O mecanismo especí­fico dessa operação é difícil de entender. Talvez nos tornemos semelhantes a “transformadores” elétricos capazes de reduzir a tensão da energia cósmica es­calonada, por vias que nos permitam focalizá-la no nível microcósmico onde vi­vemos e agimos. Seja como for, o raro indivíduo que funciona como um canal desse tipo parece, àqueles que entram em contacto com ele, pertencer a uma nova espécie de homem. (Krishnamurti, para qualquer pessoa que o tenha co­nhecido, é, claramente, um exemplo típico.) Tal ser humano irradia claridade, inteligência, ordem e amor pela sua simples presença. Parece capaz de transmutar nosso caótico mundo impessoal num domínio ético pela sua própria atmos­fera, que se acha inequivocamente carregada com energias para as quais não pos­suímos nomes nem conceitos. Quando muito, podemos captar vagamente a pre­sença e o poder dessa atmosfera em termos metafóricos e aproximados.

Kant, em contraste com isso, não nos deixa dúvidas quanto ao seu desconhe­cimento de tais estados do ser, que boa parte da humanidade registrou com notável consistência e concordância intersubjetiva. Bohm, assim como Kant, realiza um tra­balho inestimável ao delinear claramente onde devem situar-se os limites do conheci­mento. Parafraseando Kant: o gênero humano encontra-se num laço simbolizado, co­mo poderíamos exprimir em palavras atuais, por uma raça universalmente dotada de lentes de contato. Sem essas lentes, nada podemos ver, em absoluto, isto é, não po­demos ter nenhum conhecimento. No entanto, como as lentes nos chegam pré-equipadas com seus próprios filtros de cor embutidos, graças a elas só conseguimos “ver” o que os filtros permitem. Dessa forma, não vemos nada ou vemos distorcidamente. Em nenhum caso, entramos em contacto com o que é fundamental.

Perceber (não visualmente, é claro) as coisas como elas realmente são exige, usando o vocabulário de Bohm, a desativação dessas lentes, contornando-se o ego ou self que manipula o mundo através delas, e convertendo-se no canal va­zio, aberto à totalidade que é a nossa fonte. Como já explicamos, nada nesse vazio pode ser caracterizado, pois a caracterização é a tradução de númeno em fenô­meno, de não-manifesto em manifesto. Por isso, todas as linguagens falharão em apreender a essência do todo, até mesmo a mais pura delas, a matemática, como Platão reconhece na República. Apenas o silêncio é comensurável com sua na­tureza e apropriado ao seu universo de “discurso” (samadhi, a arrebatadora culmi­nação extática da meditação iogue descrita por Patanjali, que significa literal­mente “silêncio total” ou “quietude absoluta”).

Essas observações deviam lançar luz na firme postura de Bohm. A espe­rança de apreender o númeno através de olhos fenomênicos fundamenta-se num absurdo lógico, que Bohm chama de confusão e autofraude. O antiqüíssimo es­forço filosófico para sintonizar a pureza de ser e percebê-la tal como seria em si mesma sem ser percebida por um conhecedor[1] é, portanto, uma esperança vã.

Aproximar-se da infinita inteligência cósmica, do amor ou insight de que fala Bohm requer que o conhecedor dê total passagem à pura consciência não-dualista. À luz dessa necessidade, as prioridades de Bohm tornam-se compreensí­veis e parecem inevitáveis. A desintegração atômica restrita à matéria bruta — o campo do físico de partículas — é apenas um primeiro passo em nossa busca da realidade, e é o caminho presentemente seguido pela comunidade dos físicos. Mas Bohm vai muito além. A mutabilidade das formas (cf. Livro Tibetano dos Mortos) das partículas subatômicas (matéria bruta) não revelará os segredos do universo. Tudo o que ela pode nos oferecer é conhecimento, restrito, como vi­mos, ao domínio tridimensional.

Mas Bohm tem em mente um tipo mais sutil de desintegração atômica: retardar e, finalmente, parar a própria dança daquele que responde pelas mu­danças de forma (shape-shifter), isto é, a morte do pensador tridimensional e seu renascimento no domínio n-dimensional da consciência. Tal evento levaria ao estado dinâmico a que Bohm se refere, onde criação, dissolução e criação flui­riam através de nós simultaneamente, como quanta de energia que nascem e se vão em frações de microssegundo, brotando de maneira sempre renovada, sem serem detidas, agarradas ou maculadas. A conseqüência disso — caso a tarefa seja bem-sucedida — é um novo paradigma do universo, da consciência e da realidade humana. Não será mais questão de um conhecedor que observa o conhecido atra­vés do abismo de conhecimento que os separa. Esse modelo de consciência desa­pontou-nos ao longo dos séculos em que nos apegamos obstinadamente a ele.

Deve ser posto de lado, como Bohm argumenta com muita clareza. Sua substi­tuição é o austero paradigma de um campo de existência unificado, um universo autoconsciente que se reconhece um todo íntegro e interconexo. Conhecedor e conhecido são, portanto, falsidades: elaborações toscas baseadas na abstração. Não se justificam face à maneira como as coisas realmente são, isto é, face ao monismo que Bohm alega ser mais plenamente compatível com a mensagem da física moderna, baseado nas penetrações que, até agora, ela empreendeu pelo in­terior da natureza. Embora os dados sejam aceitos pelos físicos, sua interpreta­ção desses dados permanece restrita a campos que se excluem como naturezas conscientes.

É essa relutância e essa restrição que Bohm está desafiando. Ele quer ex­plorar todas as conseqüências da teoria da mecânica quântica e está arriscando sua reputação em seu compromisso com o holomovimento. Sua visão é uma teoria de campo unificado com a qual a ciência nem sequer sonha, e na qual aquele que procura e aquilo que é procurado são apreendidos como um só, o holomovimento tornando-se transparente para si próprio. Tal campo unificado não é neutro nem destituído de valores, como requer a regra geral que impera na ciência contem­porânea, mas uma energia inteligente e compassiva, manifestando-se num do­mínio ainda não-nascido, onde a física, a ética e a religião se fundem. Para a vida humana, a plena difusão da consciência de um tal domínio será revolucionária, e nos levará da informação à transformação e do conhecimento à sabedoria.



[1] Isto é, sem lentes que se interponham entre o que é percebido e o que perceba (N. do T.).

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