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Complexidade e Pensamento Complexo:

Breve Introdução e Desafios Actuais *

Humberto Mariotti


Comecemos com uma breve introdução ao tema complexidade e pensamento complexo. A complexidade não é um conceito teórico e sim um facto. Corresponde à multiplicidade, ao entrelaçamento e à contínua interação da infinidade de sistemas e fenómenos que compõem o mundo natural e as sociedades humanas. Os sistemas complexos estão dentro de nós e a recíproca é verdadeira.

É preciso, pois, que procuremos entendê-los, porque por mais que tentemos não conseguiremos reduzir a complexidade a explicações simplistas, regras rígidas, fórmulas simplificadoras ou esquemas fechados. Ela só pode ser entendida e trabalhada por um sistema de pensamento aberto, abrangente e flexível — o pensamento complexo. Trata-se de uma teoria (que hoje já dispõe de um conjunto de instrumentos práticos) que aceita e procura compreender as muitas faces e as mudanças constantes do real e não pretende negar a multiplicidade, a aleatoriedade e a incerteza.

Em nossa cultura, existe um modo hegemónico de pensar que determina as práticas no dia-a-dia, tanto no plano individual quanto no social. Esse modelo é o pensamento linear-cartesiano, que, como se sabe, foi muito influenciado por um aspecto importante do pensamento de Aristóteles: a lógica do terceiro excluído.

Essa lógica levou à idéia de que se B vem depois de A com alguma frequência, B é sempre o efeito e A é sempre a causa (causalidade simples). Na prática, essa posição gerou a crença errônea de que entre causas e efeitos existe sempre uma contigüidade ou uma proximidade muito estreita. Essa concepção é responsável pelo imediatismo, que dificulta e muitas vezes impede a compreensão de fenómenos complexos como os de natureza bio-psico-social.

Por esse modelo, A só pode ser igual a A. Tudo o que não se ajustar a essa dinâmica fica excluído. É a lógica do "ou/ou", que praticamente exclui a complementaridade e a diversidade. Desde os gregos, esse modelo mental vem servindo de base para os nossos sistemas educacionais e, consequentemente, para as nossas práticas quotidianas. Também desde essa época ele é questionado.  Platão, por exemplo, escreveu: “Separar cada coisa de todas as demais é a maneira mais radical de reduzir a nada todo o raciocínio. Pois o raciocínio e a conversa nasceram em nós pela combinação das formas entre si". (Sofista, 259e).

O modelo mental linear é necessário para lidar com os problemas mecânicos (abordáveis pelas ciências ditas exatas e pela tecnologia). Mas não é suficiente para resolver problemas humanos em que participem emoções e sentimentos (a dimensão psico-social). Por exemplo, o raciocínio linear aumenta a produtividade industrial por meio da automação, mas não consegue resolver o problema do desemprego e da exclusão social por ela gerados, porque essas são questões não-lineares. O mundo financeiro é apenas mecânico, mas o universo da economia é mecânico e humano.

O pensamento complexo baseia-se na obra de vários autores, cujos trabalhos vêm tendo aplicação à educação, biologia, sociologia, antropologia social, medicina, aos negócios/administração e ao desenvolvimento sustentado.  As considerações que se seguem representam uma tentativa de mostrar como as chamadas ciências da complexidade e o pensamento complexo têm contribuído para as interacções entre as pessoas e destas com a sociedade e o meio ambiente. Como não poderia deixar de ser, a medicina e as acções de saúde desempenham um papel da maior relevância nessas interacções.

Dada a amplitude do assunto, escolhemos para este texto falar sobre uma de suas muitas facetas. Falemos, por exemplo, sobre algumas descobertas recentes da ciência cognitiva e suas aplicações, em especial a questão da percepção.

Do ponto de vista ortodoxo, o mundo exterior ao observador é considerado «objectivo». Tudo o que nele existe é antecipadamente dado, isto é, prévio ao observador. Nessa ordem de idéias, o mundo é visto como um objecto do qual o sujeito (observador) está separado. Esse modelo mental constitui a base do empirismo, que afirma que a realidade é única e por isso mesmo deve ser percebida da mesma forma por todos os homens. A mente é o espelho da natureza e, por isso, percebemos o mundo exactamente como ele é.

Nossa percepção é, portanto, uma representação mental do que está fora de nós. É o que se denomina de representacionismo. Em conseqüência disso, ao relatar a alguém o modo como percebemos o mundo, «transmitimos» o resultado de nossas percepções «objectivas». Numa aula, por exemplo, o professor «transmite» seus conhecimentos aos alunos. É o chamado instrucionismo. Sob esse ponto de vista metodológico não há aprendizado, há instrução.

Repitamos: o representacionismo é a suposição de que nossa percepção resulta em representações mentais dos objectos percebidos. Nessa linha de raciocínio, o mundo deve ser visto do mesmo modo por todas as pessoas. Cada observador deve ser capaz de descrevê-lo da mesma forma, e quem não tiver essa capacidade está “com problemas” e deve ser convertido à visão «correcta», isto é, ao modo de ver predominante.

Foi o que se fez, por exemplo, na China de Mao Tse Tung, onde os dissidentes ideológicos eram confinados e redoutrinados. Esse processo acabou por se estender – e de maneira violenta – a todo o país, por meio da conhecida Revolução Cultural. Nesse caso, o mundo «objectivo» a ser percebido era o que estava descrito no «Livro vermelho dos pensamentos de Mao». Na antiga União Soviética, os dissidentes do Partido Comunista eram enviados a campos de concentração ou internados em instituições psiquiátricas. Esses exemplos são apenas uma pequena amostra dos milhares disponíveis nos registos históricos. Constituem mais um capítulo da volumosa e triste história das ideologias e dos fundamentalismos.

Apesar de a experiência quotidiana nos mostrar a cada passo que a percepção não ocorre assim, a teoria representacionista – hoje sob crescente questionamento – continua a ser amplamente adoptada. Em seu nome, as sociedades em que vivemos a todo instante nos pedem que sejamos «directos» e «objectivos». No entanto, recentes descobertas da ciência cognitiva e da neurociência já revelaram que o mundo externo é percebido de acordo com a estrutura cognitiva do observador. Percebemos o mundo segundo o modo como essa estrutura está preparada para percebê-lo, e não «exactamente» como ele é, ou seja, não «objectivamente».

Já tratei com detalhes desse particular em outros textos e não o farei de novo aqui.1,2 De todo modo, convém lembrar alguns pontos.

1. Como acabamos de ver, cada observador percebe o mundo externo de acordo com sua estrutura cognitiva, isto é, do modo como ele está preparado para percebê-lo.

2. Por outro lado, o mundo externo também percebe o observador – e fá-lo segundo sua própria estrutura, ou seja, da maneira como está preparado para percebê-lo. Por exemplo, quando caminhamos por uma praia ao longo desse passeio percebemos de modo pessoal os diversos detalhes do caminho e da paisagem.
Apreciamos ou não determinados aspectos da trajectória ou do ambiente. Assim, gostamos mais da areia fofa ou da areia endurecida deixada pela maré vazante; apreciamos mais ou menos a presença de algas sobre a areia; preferimos caminhar sobre o solo mais seco ou molhar os pés à medida que avançamos; e assim por diante.
Terminada a caminhada, se olharmos para trás veremos que ao longo de nossa trajectória deixámos no mundo externo – na praia – as marcas da nossa passagem. São as nossas pegadas na areia e, além disso, o modo como elas estão impressas: mais ou menos profundamente, de acordo com o nosso peso; mais ou menos em linha recta, segundo o nosso modo de andar ou as paradas que eventualmente fizémos; mais ou menos regulares e distantes umas das outras, segundo o comprimento de nossas pernas e a velocidade com que andamos ou corremos.
Todos esses sinais constituem os registos, as evidências de como a estrutura do mundo externo “percebeu” nossa interação com ele. O mundo percebeu e registou a nossa passagem da maneira como pôde fazê-lo.
Mais ainda, ao longo desse nosso passeio na praia, também fomos percebidos por muitos olhos e ouvidos: os de outras pessoas que, de perto ou de longe, notadas ou não, testemunharam a nossa caminhada. E também por muitos outros olhos, ouvidos e outras formas e percepção de aves e outros seres vivos que, durante o nosso passeio, interagiram connosco. Pouco importa que não os tenhamos notado: mesmo assim, as interacções aconteceram em sua multiplicidade e complexidade.

3. Pode-se concluir, portanto, que a percepção e as acções dela decorrentes não são fenómenos de direcção única, do tipo sujeito -> objecto, observador ->  observado. Ou, no caso da medicina, que as acções de saúde não são «objectivas» e unidirecionais, do tipo médico -> paciente. Ao contrário, elas são uma via de mão dupla: sujeito D objecto, observador D observado, médico D paciente. O sujeito/observador percebe o objecto/observado à sua maneira, e também é percebido pelo objecto/observado à maneira peculiar deste.

Em suma, não existe percepção somente subjectiva, nem percepção apenas objectiva. A percepção resulta de uma troca, de um intercâmbio entre o percebedor e o percebido. Mas cada um percebe o outro a seu modo: segundo a maneira como está estruturado para tanto. Por conseguinte, se houver mudança de estrutura haverá também mudança de modos de perceber e, consequentemente de agir. Este é um ponto fundamental e será retomado adiante.

O fenómeno da percepção é o mesmo, mas seus agentes são múltiplos. Esse facto tem grande importância prática em todas as acções humanas, inclusive, é claro, na medicina e na educação. Por exemplo, quando um professor dá uma aula, aquilo que ele comunica a seus alunos é percebido e entendido de modo diverso de aluno para aluno. São percepções semelhantes mas são diferentes, individuais. Os especialistas em comunicação já notaram esse fenómeno há muito tempo. Isso os levou a concluir que o resultado final da comunicação não é exactamente o que é emitido pelo comunicador, mas sim o que é individualmente recebido pelos receptores de sua mensagem. 

É o que estabelece o teorema de Shannon: «Uma mensagem enviada por meio de um canal qualquer sofre interferências no decurso da transmissão, de modo que à sua chegada parte das informações que ela continha é perdida». Vemos, portanto, que qualquer comunicação ou mensagem está sujeita a «ruídos», erros, interferências imprevistas, e tudo isso pode alterar ou deturpar seu conteúdo original.

Em um livro magistral que todo médico deveria ler – «O caráter oculto da saúde» –, o filósofo Hans-Georg Gadamer observa: «O diálogo promove a humanização da relação entre uma diferença fundamental, a que há entre o médico e o paciente. Tais relações desiguais pertencem às mais difíceis tarefas entre os seres humanos. O pai e o filho. A mãe e a filha. O professor, o jurista, o pastor. Resumindo: o profissional. Mas isso é algo que qualquer um de nós conhece bem, o quanto é difícil entendermo-nos!».3

Uma consciência cada vez mais ampla dessa dificuldade é indispensável a qualquer relação interpessoal – e a relação médico-paciente está entre as mais importantes. Para superar esse e outros obstáculos, precisamos aprender a pôr em prática um dos fundamentos do pensamento complexo: a unidade na multiplicidade (unitas multiplex). Segundo esse princípio, os seres humanos são todos iguais (compartilham a condição humana), mas ao mesmo tempo são todos diferentes (são indivíduos, têm origens diferentes, actividades diferentes, visões de mundo diversas).

Sabemos que a experiência de estar doente não é vivida da mesma maneira por todas as pessoas. A atitude de cada um de nós em relação à doença varia na razão directa da complexidade da condição humana, suas contingências e muitas outras variáveis. A nacionalidade, a etnia, o status económico e social e as crenças religiosas são apenas alguns exemplos dessas variáveis. Assim como deixamos nossas pegadas na areia, a praia também deixa em nós as suas marcas. A influência da paisagem e de seus detalhes sobre o nosso estado de espírito e condições de saúde durante o passeio estão entre elas. De modo análogo, as doenças – as próprias ou as dos outros – também deixam suas marcas em todos nós, médicos ou não.

Por tudo isso, uma profunda reflexão sobre as relações da medicina não apenas com a saúde ou a doença, mas também com a totalidade e a complexidade  da condição humana deveria fazer parte da educação médica. Em todos os sentidos, todas as escolas médicas e todos os países.

Seria possível chegar a isso em nossa era mecanicista e objectivista? Para tentar responder a essa pergunta, retomemos uma frase escrita linhas atrás. Ela sugere-nos uma resposta: se conseguirmos fazer mudanças suficientes em nossa estrutura cognitiva, haverá modificações em nossos modos de perceber e, consequentemente em nossos modos de agir. Por tais modificações devemos entender mudanças de modelos mentais, de modos de pensar. Trata-se, evidentemente, de uma tarefa de imensas proporções – mas nem por isso ela deve nos deixar desanimados. Essa é a proposta-chave do pensamento complexo.

 

Referências

1. MARIOTTI, Humberto. Autopoiesis, culture, and society. Disponível em http://www.oikos.org/mariotti.htm

2. _____. Pensamento complexo: suas aplicações à liderança, à aprendizagem e ao desenvolvimento sustentado. São Paulo: Atlas, 2007.

3. GADAMER, Hans-Georg. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes, 2006.

 

© Humberto Mariotti 2007

* Publicado na Revista Portuguesa de Clínica Geral (Rev Port Clin Geral) 23: 727-731, 2007.

 

Humberto Mariotti é médico e psicoterapeuta. Professor e Coordenador do Centro de Desenvolvimento de Lideranças da Business School São Paulo. Consultor em desenvolvimento pessoal e organizacional. Conferencista nacional e internacional. Coordenador do Núcleo de Estudos de Gestão da Complexidade da Business School São Paulo (Brasil).

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