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Competitividade e Violência Estrutural *

Humberto Mariotti ** 

 

Ao longo da história, nós, seres humanos, temos buscado maneiras de entender o mundo em que vivemos e lidar com ele. Essas tentativas têm produzido uma série de visões, de teorias que pomos em prática em relação a nós mesmos, aos que nos são próximos, às sociedades em que vivemos e à natureza. As maneiras de avaliar se essa ou aquela visão de mundo é “boa” ou “má”, “certa” ou “errada”, vêm aos poucos se modificando.

Nos últimos tempos, cada vez mais se adota em relação a essas teorias o seguinte critério: não se trata de saber se um conjunto de idéias está certo ou errado do ponto de vista teórico. O que importa é conhecer quais são os valores em que ele se baseia e quais os resultados de suas aplicações ao cotidiano. Em outras palavras, que conseqüências éticas emergem de sua prática.

Hoje, e cada vez mais, cresce o número de pessoas que estão atentas aos resultados não apenas quantitativos, mas aos que se referem às relações qualitativas entre as instituições, as organizações e os grupos humanos. Trata-se de avaliar as práticas sociais, desde o âmbito macro-estrutural das interações entre as instituições até o plano microfísico dos intercâmbios entre grupos humanos locais.

Dessa maneira, torna-se necessário examinar os ideários não apenas como modelos teóricos absolutos, válidos para todos. É indispensável investigar também o modo pelo qual eles foram produzidos — qual a maneira de pensar que os gerou e as conseqüências éticas de tudo isso. É dentro desse espírito que examinarei aqui a competitividade e suas relações com a violência estrutural. São dois fenômenos atualíssimos e, como se verá, bem mais interligados do que parece à primeira vista.

Neste texto, seguindo a orientação do meu livro As paixões do ego: complexidade, política e solidariedade, defino a competitividade como uma radicalização da competição, o que a torna predatória e portanto desvantajosa para todos os envolvidos. A ela fomos levados por circunstâncias culturais, que não podem ser entendidas de modo adequado pelo modelo mental predominante em nossas sociedades. É preciso, pois, buscar outro meios de compreensão.

Para que isso possa ser feito com um mínimo de eficácia, é necessário um instrumento epistemológico que englobe duas características principais: a) clareza; b) verificabilidade nos fenômenos do dia-a-dia. Esse modelo não só existe, como vem sendo aplicado com proveito e eficácia nos últimos anos. Trata-se do pensamento complexo, proposto por Edgar Morin1. Para entendê-lo e aprender a usá-lo, é necessária a introdução que se segue.

Uma vida dividida

Como se sabe, o ser humano se caracteriza por dois modos básicos de vida: um orgânico, animal, e outro cultural. Neste último, ele elabora um conjunto de práticas e realizações a que se deu o nome de técnicas. Em nosso duplo âmbito de existência, exercemos de um lado a vida fisiológica do corpo, que implica a ingestão, a digestão, a excreção, o acasalamento e a reprodução. A essas atividades somamos as culturais — as realizações da ciência e da técnica. Ao seu conjunto pode-se chamar de vida mecânica. A par dessa dimensão, sabemos que a vida humana inclui sentimentos, emoções e um âmbito espiritual. A esse outro domínio pode-se dar o nome de vida não-mecânica.

Esses dois modos básicos de existir se entrelaçam e se alimentam mutuamente de modo constante, de maneira que podemos dizer que são complementares. Assim, de um lado estão as necessidades mecânicas, que derivam de termos um corpo concreto, que vive em interação com um mundo natural também concreto. De outra parte, nossa existência inclui dimensões intangíveis, como os já mencionados sentimentos, emoções e a espiritualidade.

Se considerados em separado, esses modos de existir se revelam necessários mas não suficientes. Isso significa que as práticas da vida mecânica são indispensáveis, mas não bastantes em relação à totalidade do nosso existir. O mesmo vale para a dimensão não-mecânica do processo vital. A condição humana exige que elas interajam o tempo todo, em complementaridade e sinergia.

Desde o nascimento, nosso cérebro é programado para lidar com esses dois modos. Para as necessidades da vida mecânica, ele opera com a lógica da causalidade simples — o pensamento linear. Trata-se do modelo mental do "ou/ou", do sim/não. É um modo operativo que não admite meio-termo: ou amigo ou inimigo; ou bem ou mal; ou certo ou errado. Como é óbvio, trata-se de um sistema adequado à concretude e às contingências da corporeidade. É, por natureza e necessidade, uma lógica de exclusão.

No outro pólo, como mostra a experiência, a vida com freqüência nos põe diante de determinadas circunstâncias nas quais o raciocínio do sim/não, do "ou/ou", não é satisfatório. É o caso das situações em que nos vemos às voltas com sentimentos e emoções, muitos dos quais contraditórios. Nesses momentos torna-se necessário pensar em termos mais amplos, em termos de “talvez” e de “e se?”. Torna-se preciso lidar com valores e com a aleatoriedade. Chamamos esse padrão mental de pensamento sistêmico. É, por natureza e necessidade, um modelo de inclusão.

Ao nascermos, esses dois modos convivem numa relação circular, recorrente: o linear influencia o sistêmico, que retroage sobre ele e assim por diante. No entanto, à medida que crescemos a educação e a cultura nos tornam seres divididos. Acostumamo-nos a raciocinar desta maneira: há situações nas quais se deve usar o modelo mental linear: são as relativas à vida mecânica. E há circunstâncias em que é necessário pensar de modo sistêmico: são as da existência não-mecânica.

Achamos que essa separação resolve tudo e acomoda as coisas, e na verdade ela não deixa de ser útil para fins didáticos. Mas não nos limitamos a esse uso: conforme o caso, “desativamos” um sistema de pensamento e “ativamos” o outro. Ao reduzir tudo às partes isoladas, praticamos o reducionismo cartesiano. Ao insistir em ver tudo em termos de totalidade, pomos em prática o chamado sistemismo reducionista. Em ambos os casos não percebemos que estamos, no fim das contas, usando o modelo linear: ou pensamos de modo linear ou pensamos de forma sistêmica. Dessa maneira, mesmo quando utilizamos o pensamento sistêmico o fazemos com exclusão do linear e vice-versa.

Acontece, porém, que no mundo natural as coisas funcionam de maneira simultânea, e não mudarão só por causa de nossas teorias. Ao não permitir que os modelos mentais linear e sistêmico se complementem, construímos a base de boa parte de nossos problemas. Apesar de sabermos que a vida mecânica e a não-mecânica são inseparáveis e sempre interagem (a vida é uma só: não somos máquinas que podem ser ligadas e desligadas à vontade), continuamos a viver como se ela fosse um processo de ou inclusão/ ou exclusão.

O modo como o pensamento sistêmico é utilizado por algumas consultorias empresariais é um bom exemplo disso. Trata-se de uma distorção que surge todas as vezes em que esse modelo é aplicado sem levar em conta a idéia de complexidade. Como se sabe, a metodologia de uso desse modo de pensar foi formalizada em termos de padrões — os chamados arquétipos do pensamento sistêmico —, que têm se mostrado eficazes para resolver alguns problemas específicos.

Contudo, talvez contra os propósitos de seus idealizadores, os arquétipos vêm sendo utilizados de forma esquemática demais, o que tem levado a conclusões que tendem a reduzir os fenômenos ao âmbito da totalidade. Esse modo de utilização parte da suposição de que um sistema é apenas um composto de partes interdependentes e que a soma delas é sempre superior ao todo. Todavia, a experiência mostra que esse nem sempre é o caso, porque o todo e as partes interagem de forma contínua, e portanto não são mutuamente redutíveis de modo fixo. As abordagens que ignoram essa condição revelam desconhecimento dos três princípios fundamentais do pensamento complexo2, que são indispensáveis para evitar o sistemismo reducionista e suas conseqüências enganosas, das quais a principal é a confusão entre complexidade e complicação.

Tal equívoco se deve ao afã de reduzir tudo ao operacional: no lugar de uma complexidade a ser entendida e vivida, põe-se uma complicação a ser simplificada. Nessas circunstâncias, o pensamento sistêmico acaba sendo usado para produzir resultados lineares. Não fosse isso bastante, ele tem sido apresentado como “vantagem competitiva” — o que vem ocorrendo com uma freqüência muito maior do que se imagina. Em suma: em muitos casos, os arquétipos são comercializados como “ferramentas de mudança” mecânico-produtivistas. Isto é, são utilizados de modo necessário, mas não suficiente.

Isso mostra como o ânimo para a competição predatória está bem mais arraigado do que imaginamos. Por que agimos assim? Se nossos neurônios estão programados para a interação harmoniosa e simultânea, entre os modos linear e sistêmico de pensar — que nos permite adaptar-nos às situações do processo vital —, por que nos dividimos em dois sistemas de pensamento e, pior ainda, por que fazemos com que um exclua o outro?

O natural e o cultural

Apesar de a natureza nos ter preparado para utilizar esses dois modelos mentais, ao separá-los nossa cultura estabeleceu entre eles uma competição. Como resultado, o modelo linear passou a predominar de tal maneira que quase excluiu o pensamento sistêmico daquilo que chamamos de “vida prática”. Em nosso cotidiano eminentemente quantitativo, o modelo sistêmico foi relegado a um plano secundário. Preferimos um padrão que exclui a um que inclui, quando deveríamos seguir a natureza e aceitar a circularidade entre um e o outro. Esse fenômeno em si já é uma violência. De fato, ele constitui o fundamento de todas as manifestações violentas que permeiam as nossas sociedades, e está presente em quase todos os nossos relacionamentos com o mundo.

As maneiras como essa situação foi criada ao longo e nossa evolução são expostas em detalhe por Gebser3, Kamenetzky4, Mariotti5 e Maturana & Verden-Zöller6, entre vários outros. Em suma, vivemos em uma cultura cujos processos mentais são formatados pelo pensamento linear. Dessa forma — como é característico dos fenômenos culturais —, esse modo de pensar é visto como a única maneira possível de lidar com o mundo, e por isso as conclusões dele derivadas são tidas como verdades incontestáveis.

Se a formatação linear de nossa mente é um processo cultural e não natural, as práticas daí derivadas são também culturais. Podem portanto ser modificadas, desde que haja mudança de cultura. É claro que isso se aplica à competitividade, como veremos adiante. Mas trata-se de uma alteração nada fácil, porque essa formatação, como mostraram Gimbutas7 e Eisler8, entre outros, deriva de um processo estabelecido há milênios. Não é apenas, como muitos acreditam, o resultado de um “paradigma” que surgiu com o pensamento de Newton, desenvolveu-se com Descartes e consolidou-se com o cientificismo do século 19.

De todo modo, vivemos em uma cultura na qual predominam os valores gerados pela exclusão do modelo mental dominante: ou eu ou o outro; ou venço ou sou vencido; ou elimino ou sou eliminado. Eis a essência da competitividade. Ela é um valor produzido pelos nossos condicionamentos, e desse modo é justificável (e justificada) por esses mesmos condicionamentos.

A competitividade é uma expressão do embate entre os valores humanos mecânicos e os não-mecânicos, cujo desfecho foi o predomínio dos primeiros. É uma das faces da dissociação que nossa cultura promoveu entre a razão e os sentimentos. Segundo o projeto da modernidade, a principal manifestação da idéia de progresso — a prosperidade material — deveria ser acompanhada de uma evolução da inteligência, por meio da qual as conseqüências do darwinismo social pudessem ser ao menos atenuadas. Se era inevitável a exclusão — pensava-se —, que pelo menos os vencedores possam fazer alguma coisa pelos vencidos.

Nos últimos tempos, ao que tudo indica, aumenta a consciência da importância dessa posição — mas nem tanto. A noção de competitividade, que hoje orienta muitas das nossas políticas públicas e práticas sociais continua baseada em filosofias como a de Thomas Hobbes, entre outros. Pressupõem que a maldade é intrínseca e dominante no ser humano.

Sabemos que economistas clássicos, como David Ricardo e os da escola de Manchester, transportaram a idéia da hostilidade básica entre os homens para a área econômica: o progresso humano baseia-se na competição sem tréguas. Depois deles, essa mesma orientação foi transplantada para a biologia. Nessa linha de pensamento, há quem sustente que, ao estimular a competitividade, o capitalismo nada mais faz do que seguir a natureza humana.

Tais pontos de vista permeiam a nossa cultura e vêm sendo repetidos ao longo do tempo. Para muitos, esse fato torna quase impossível acreditar-se em qualquer tipo de mudança. É como se apenas pudéssemos pensar em modificações, mas nunca praticá-las: será sempre assim porque sempre foi assim. Nessa ordem de idéias, a noção de competitividade continua muito ligada ao darwinismo social e à questão da presença do mal no coração do homem.

Três modos de pensar

Por ser orientada por um modelo mental excludente, é claro que a competitividade tende a excluir. Acostumados que estamos a esse modo de pensar, e habituados a levá-lo à prática, não percebemos que cedo ou tarde ele produzirá a nossa própria exclusão. Ainda assim, é preciso deixar claro que não se trata de adotar em relação à competitividade uma atitude maniqueísta e condenatória. É importante aprender a pensá-la de outras maneiras, a fim de poder avaliar se suas conseqüências éticas (ou seja, seus resultados práticos) são as que na verdade desejamos para construir uma vida melhor.

Estamos, pois, diante  da seguinte situação:

a) é inócuo analisar a competitividade apenas do ponto de vista linear, porque foi esse modelo mental que a criou e ainda a alimenta;

b) examinar a competitividade só do ponto de vista sistêmico (o que inclui vê-la do ângulo dos sentimentos e emoções) é também uma postura improdutiva. No limite, ela levará a conclusões emocionais e por isso mesmo tendentes a moralismos, pieguices e condenações sem fundamentos;

c) é preciso, pois, investigá-la de uma perspectiva não reducionista — o pensamento complexo.

A complexidade não é um conceito teórico. Ela corresponde à multiplicidade e à contínua interação da infinidade de sistemas e fenômenos que compõem o mundo natural. Os sistemas complexos estão dentro de nós e a recíproca é verdadeira. Assim, é preciso conhecê-los. Como já vimos, o pensamento complexo é um modelo desenvolvido por Edgar Morin para lidar com a complexidade. Para explicá-lo, costumo utilizar um exemplo. Imaginemos um indivíduo em uma praia. Se lhe perguntarmos se a Terra é plana ou redonda, ele responderá que é plana: “Basta ver a areia sob os nossos pés e observar o oceano”, dirá.

São dados diretos, que podem ser quantificados: de onde esse observador está até o mar a distância é de, digamos, 50 metros; da costa do Brasil à cidade do Cabo, na África do Sul, são tantos mil quilômetros; e assim por diante. Eis o ponto de vista linear. Baseia-se na relação imediata entre causa e efeito. É esse modo de pensar que faz com que o indivíduo do nosso exemplo imagine que, se está separado do mar por 50 metros, e da África por tantos mil quilômetros, ele não faz parte desses ambientes.

Se lhe mostrarmos uma fotografia da Terra tirada da Lua, ou de um satélite artificial em órbita terrestre, e repetirmos a pergunta, ele dirá que a Terra é redonda. Intuirá também que ela não só é redonda como faz parte de um sistema. Terá então mais facilidade para compreender que na realidade não está separado desse sistema, como parecia quando estava na praia. E agora, com toda probabilidade, verá a si próprio como parte dele. A esse segundo modo de raciocinar chamamos de pensamento sistêmico.

Façamos agora a esse mesmo indivíduo uma terceira pergunta: afinal de contas, a Terra é plana ou redonda? Com base nas experiências anteriores, ele responderá que ela é ao mesmo tempo plana e redonda. São percepções que não se excluem: elas mantêm entre si uma relação ao mesmo tempo antagônica e complementar. O observador já não pode sentir-se excluído de seu processo de conhecimento. Eis o pensamento complexo.

No mundo natural não há fenômenos de causa única. Além disso, as coisas acontecem de maneira simultânea e não de modo seqüencial. A seqüencialidade é uma criação nossa — uma invenção de observadores que acham que estão separados dos processos que observam. E assim nos colocamos, porque nossa mente condicionada não nos permite uma visão de mundo mais ampla. É o que aprendemos, quando utilizamos o pensamento complexo como sistema de conhecimento.

A complexidade do mundo só pode ser bem entendida por um sistema de pensamento aberto, abrangente e flexível como o complexo. Ele configura uma visão que aceita e procura entender as mudanças constantes do real e não pretende negar a contradição, a multiplicidade, a aleatoriedade e a incerteza, e sim conviver com elas. Em suma, é um modo de pensar que inclui, que aglutina. Mas que ao mesmo tempo não perde de vista que essa aglutinação é um processo dinâmico, no qual o todo não pode ser reduzido às partes nem vice-versa.

Competição predatória, exclusão e violência

Eis a palavra-chave: inclusão. Para seres gregários como nós, ser incluído não é apenas um evento fortuito da vida: é uma necessidade fundamental. Um ser humano isolado é algo inconcebível. Mesmo quando um indivíduo se separa dos demais e vai viver como ermitão, ele só existe como ente isolado em relação à comunidade de que decidiu se afastar. É ela que confirma o seu isolamento. Necessitamos do outro para que ele confirme a nossa existência. Só somos humanos quando existencialmente confirmados.

O outro precisa ser respeitado porque é o outro, não por ser rico, erudito, porque é um grande técnico ou tem poder político e econômico. Respeitá-lo significa reconhecer em primeiro lugar a sua legitimidade como ser humano. Os demais atributos podem ser importantes, mas vêm depois. Desrespeitar essa premissa é uma violência.

Nossas sociedades estão diante de um absurdo: somos seres que, a despeito de precisarem tanto de inclusão, adotam como preferencial um sistema de pensamento que é antes de mais nada excludente. Essa — e não a competição em si — é a causa básica da violência de nossa cultura. A competitividade é apenas uma das muitas manifestações dessa violência estrutural, que nós mesmos construímos e de cuja responsabilidade não podemos fugir.

Martin Heidegger9 escreveu que uma das características primordiais do ser humano existente — o Dasein — é que por existir no mundo precisa preocupar-se com ele, cuidar dele. A esse cuidado o filósofo chamou de Sorge. Preocupar-se com o todo, zelar por ele, é uma forma de saber-se participante, ligado e responsável. A violência fundamental, portanto, é aquela que retira do Dasein a noção de pertencer à totalidade. Foi esse caminho que nossa cultura escolheu, ao privilegiar as partes, estimular a fragmentação e achar que o mundo é um objeto de uso do qual não participamos.

A competição sempre existiu e sempre existirá. É fácil lembrar exemplos históricos, e mesmo situações tiradas do mundo natural, que mostram que as espécies competem entre si. Mas a competitividade é diferente: corresponde à alienação do Dasein, fenômeno que nos levou à competição predatória, que não visa apenas a sobrevivência, mas sobreviver com eliminação do competidor. Sob essa ótica não basta vencer: a vitória tem mais sabor quando inclui a destruição do outro. Nos últimos tempos, a prevalência da competitividade se acentuou por meio da combinação de múltiplos fatores10 que transformaram a competição em ideologia.

O pensamento linear sustenta que as causas são imediatamente anteriores aos efeitos ou estão muito próximas deles, e que essas relações ocorrem sempre no mesmo contexto de espaço e tempo. Embora haja autores que estudem as relações entre a complexidade, o pensamento sistêmico e a economia, não há dúvida de o pensamento linear é o utilizado pela grande maioria para lidar com os processos econômicos. Mas é preciso não esquecer que ele subestima, ou mesmo ignora, as dimensões não-mecânicas da existência humana. Em conseqüência, muitas vezes cria cenários nos quais o ser humano é dividido, utilizado e por fim excluído.

Trata-se, enfim, de uma super-simplificação da condição humana, que pretende resolver problemas complexos por meio de um instrumento simplificador. É por meio desse ideário (hoje, convém repetir, convertido em ideologia) que nos propomos a buscar uma boa qualidade de vida. Entretanto, a observação mostra o que na realidade ocorre: essa qualidade, além de ser acessível a poucos, passo a passo se transforma no subproduto de um processo muito mais amplo — que começa pela negação do humano e acaba na exclusão social, na violência e na morte.

O  mais trágico dessa violência é que ela atinge a todos. É o que mostra a experiência do cotidiano. Se de um lado a massa excluída cresce, do outro, em muitas cidades, aumenta o número de pessoas que se entrincheiram atrás de grades, cercas, muros, que se confina no universo dos condomínios fechados, dos shopping centers, etc. É a massa dos que querem sair com tranqüilidade e não podem.

Como sabemos, em muitos países os assaltos, os seqüestros, as invasões de terras e outras ocorrências restringem cada vez mais o bem-estar que só a liberdade e a tranqüilidade podem trazer. É muito difícil entender considerações como estas por meio do raciocínio linear. A experiência cotidiana acabará por nos levar a essa compreensão — mas isso demandará muito tempo e terá um custo muito alto. Esse fato é grave, porque enquanto não houver uma percepção mais ampla da situação não se pode pensar em soluções eficazes. É certo que algum grau de entendimento já existe. Mas ele é superficial e, no mais das vezes, mantém-se num plano apenas local.

De todo modo, as pessoas pressentem que as soluções não podem ser tão limitadas, embora o tema seja em geral discutido como se esse pressentimento não existisse. Para tanto contribui muito a nossa linguagem, que, por ser fruto de uma cultura unidimensionalmente formatada, não consegue exprimir de modo satisfatório situações sistêmicas e complexas. Cedo ou tarde, teremos de reconhecer que é indispensável utilizar um modelo mental que nos permita perceber que os valores materiais (os da vida mecânica), aliados aos não-materiais (os da vida não-mecânica), compõem um quadro de referência mais justo para definir o que é qualidade de vida.

 Por enquanto, porém, a superficialidade faz com que as questões humanas sejam super-simplificadas, o que na prática se traduz por uma abordagem imediatista do viver. Por essa ótica fica difícil entender, por exemplo, que a perda progressiva das liberdades civis atinge também os que têm emprego, bens e dinheiro. Afinal, não poder sair à rua sem medo de ser assaltado, seqüestrado, assediado, etc., é uma forma de perda de liberdade. Trata-se de um efeito não contíguo às causas — e por isso de difícil compreensão por nossa mente condicionada.

Agora fica mais fácil entender que o fundamento da violência estrutural não é a competição — e nem mesmo a competitividade como tal —, mas sim a formatação da mente de nossa cultura pelo modelo mental linear. Em nossa cultura imediatista e de visão estreita, imaginamos que do pensamento passamos à ação e desta aos resultados, isto é, às conseqüências. Não percebemos que para que surja o pensamento é necessária a existência de uma estrutura capaz de produzi-lo. É ela que está formatada pelo modelo linear, que opera do seguinte modo:

Estrutura (linearmente formatada) -> Pensamento Linear -> Ação -> Conseqüências.

No padrão linear o pensamento não coteja seus resultados com sua estrutura, isto é, não retroage sobre si mesmo, não se auto-examina, não se questiona. Desse modo, dificilmente se considerará responsável pelas conseqüências de sua aplicação prática. Com um modelo como esse, não é fácil pensar em termos de responsabilidade social.

Na abordagem complexa essa retroação existe: o pensamento questiona a si próprio não apenas depois de formado mas antes mesmo de se estruturar, isto é, ainda no plano da intenção. Investiga-se, assim, o próprio modelo mental que produz o pensar. Eis por que esse modo epistêmico é tão importante para o desenvolvimento da responsabilidade social, entre outras tantas aplicações. É o que se pode perceber nos exemplos abaixo:

1. Pensamento Linear: Estrutura (linearmente formatada) -> Pensamento linear -> Competitividade -> Violência estrutural. 

2. Pensamento Sistêmico: ... Estrutura (linearmente formatada) -> Pensamento linear -> Competitividade -> Violência estrutural -> Estrutura (linearmente formatada) -> ...

É essa retroação, essa autocrítica circular, que falta à nossa cultura. Até pouco tempo não tínhamos instrumentos de conhecimento que nos permitissem tal abordagem. Mesmo nos dias atuais esse instrumental ainda não está disponível para a grande maioria das pessoas, embora em vários países, inclusive no Brasil, haja centros empenhados em estudá-lo e utilizá-lo.

Em suma: a violência estrutural alimenta a si própria, porque o modelo mental linear predominante em nossa cultura não retroage sobre si mesmo, não se auto-investiga. Por isso, enquanto se esgrimem argumentos “lógicos” (lineares, em sua maioria) e se trocam acusações (também baseadas nessa noção limitada de causa e efeito), nossa situação se agrava a olhos vistos.

Neste ponto, pode-se perceber com clareza que não se trata de ver a competitividade de maneira moralista e quixotesca. É preciso examinar o modelo mental que a constituiu e questioná-lo, na busca de novas formas de abordar a questão e seus múltiplos desdobramentos. Já não há dúvidas de que isso pode ser feito na prática.

Os exemplos são muitos. Alguns deles estão descritos por Mario Kamenetzky11, que estudou as modificações da consciência coletiva em relação a transformações econômicas, políticas e sociais. Merecem especial menção suas experiências com modificações de consciência coletiva em Sri Lanka, país no qual testemunhou mudanças em direção à cooperação em comunidades nas quais predominava não apenas a competitividade, mas a violência aberta.

A indispensabilidade do outro

A noção invariável do outro como adversário, como inimigo a exterminar, é uma das marcas da competitividade de nossa cultura. Por meio dela vivemos no cotidiano essa paranóia. Trata-se de uma visão de mundo que exclui a possibilidade de que o outro possa ser superado pela competência, mas preservado para se tornar capaz de aprender a vencer, isto é, aprender a ser competente. O ideal da competitividade, pelo contrário, é vencer de tal modo que o vitorioso seja sempre o primeiro e o único — como se pudéssemos existir sem os outros.

No mundo natural não há competitividade, e sim competência — a competição que não implica sempre a eliminação do outro. Como observa Maturana, quando dois animais estão diante do mesmo alimento e apenas um come, ele o faz porque naquele momento foi o mais competente para tanto. Mas isso não quer dizer que aquele que não comeu seja daí por diante impedido de se alimentar e morra de fome.

Entretanto, quando as circunstâncias envolvem a cultura da competitividade, o ser humano que venceu não se satisfaz por ter vencido. Sente-se inseguro da continuidade da sua competência, e por isso precisa ter certeza de que aquele que foi derrotado deixe de ser para ele uma ameaça. Precisa, portanto, eliminá-lo. Ainda assim, esse fenômeno não se deve à dimensão cultural em si: ocorre de modo mais visível em uma cultura como a nossa, que não sabe como lidar com a totalidade.

Educação e mudança

Como é fácil perceber, quando usamos o pensamento complexo para analisar a competitividade surgem constatações nem sempre agradáveis, mas nem por isso menos instrutivas. A primeira delas, como vimos, diz respeito à violência estrutural. Pelo prisma do pensamento linear, a competitividade é apresentada como algo útil, necessário, algo que deve ser estimulado. O mesmo exame, feito por meio do modelo mental complexo, mostra como ela está ligada a uma série de distorções que hoje, no mundo inteiro, vêm gerando duas sérias conseqüências: a exclusão social e a disseminação do medo.

Nenhuma delas pode ser compreendida nem trabalhada de modo eficaz sem que reformulemos nossa atitude habitual para com o outro, que hoje, como já sabemos, é em larga escala excludente. Passar a incluí-lo, em vez de vê-lo de modo quase invariável como um concorrente a excluir, equivale a trocar a competitividade pela competência.

É preciso entender que não se trata de afastar uma coisa para substituí-la por outra, como se faz quando se usa o modelo mental linear. A competência não exclui a competitividade: ao contrário, ela a inclui e ultrapassa. Ao fazer isso, procura corrigir-lhe as impropriedades e a transforma em fator de busca de uma qualidade de vida mais consistente com a realidade da existência humana, e não apenas com as exigências de um mercado conduzido por um modelo mental unidimensional.

O diferencial que faz com que surja a competência (a competitividade não vista como competição predatória)  é a educação. Não se trata, porém, do modelo hoje predominante em nossas escolas, na maioria das quais o que na realidade se faz é adestrar as pessoas para a competitividade, e não prepará-las para a competência. O modelo que buscamos é baseado no pensamento complexo. É uma educação que qualifica, habilita, reintegra — enfim, que recupera o que havia sido excluído, tanto no campo dos saberes quanto no das interações humanas.

Trata-se, em suma, de uma estratégia primária: se produzimos um determinado bem, é necessário cuidar para não deixar os compradores sem capacidade de adquiri-lo. Ou seja, é preciso não excluí-los. É tão simples assim. No entanto, é o contrário disso que faz a cultura da competitividade, não apenas em relação a indivíduos mas em relação a países inteiros. E o discurso econômico ortodoxo, por mais erudito que seja, não consegue esconder esse fato.

Por outro lado, a competência faz com que a competitividade deixe de ser algo predatório. Competência não significa que não deva existir concorrência. Significa apenas que não é indispensável que haja predatoriedade, situação na qual no fim das contas não há vencedores, embora a princípio não pareça assim. Ser competente não quer dizer evitar o êxito nem deixar de buscar um lugar vantajoso no mundo dos negócios. Tudo isso faz parte das práticas da vida mecânica e é, portanto, necessário.

Nos últimos tempos, muito se tem escrito a respeito de como pôr todas essas idéias em prática. É da maior importância que essa literatura seja divulgada entre os homens de empresa, porque hoje é no universo das corporações que esse esforço educacional tem melhores condições de se desenvolver.

Os trabalhos pioneiros de Willis Harman12 e colaboradores são exemplos que merecem destaque. Esses textos, bem como as práticas que deles emergiram e emergirão, revelam modos de compreender a totalidade e, portanto, de lidar com a violência estrutural. Outra área em desenvolvimento nos últimos tempos — e aqui se destacam as aplicações ao universo das empresas — é o trabalho com os grupos de diálogo13-17.

Todas essas abordagens fazem parte do grande esforço para a realização do que Edgar Morin chama de reforma do sistema de pensamento dominante em nossa cultura. Aqui a educação, a responsabilidade social e a ética ocupam lugar de destaque. A este respeito, convém lembrar mais alguns itens de uma bibliografia hoje em franco crescimento18-24.

Referências

1. Edgar Morin, La complexité humaine, Paris, Flammarion, 1994.
2. Humberto Mariotti, Reducionismo, “holismo” e pensamentos sistêmico e complexo: suas conseqüências na vida cotidiana, www.geocities.com/pluriversu
3. Jean Gebser, The ever-present origin, Athens, Ohio, Ohio University Press, 1985.
4. Mario Kamenetzky, The invisible player: consciousness as the soul of economic, social, and political life, Rochester, Vermont, Park Street Press, 1999.

5. Humberto Mariotti, As paixões do ego: complexidade, política e solidariedade, São Paulo, Palas Athena, 2000.
6. Humberto Maturana e Gerda Verden-Zöller, Amor y juego: fundamentos olvidados de lo humano, Santiago, Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997.
7. Marija Gimbutas, The early civilization of Europe. Los Angeles, University of California Press, 1980.
8. Riane Eisler, O cálice e a espada: nossa história, nosso futuro, Rio de Janeiro, Imago, 1989.
9. Martin Heidegger, Being and time, Nova York, Harper & Row, 1962.
10. Humberto Mariotti, op. cit., p. 104 e segs.
11. Mário Kamenetzky, op. cit., p. 239 e segs.
12. Willis Harman, Why a World Business Academy?, Burlingame, Califórnia, World Business Academy, 1990.
13. Daniel Yankelovich, The magic of dialogue: transforming conflict into cooperation, Nova York, Simon & Schuster, 1999.
14. David Bohm, On dialogue, Londres, Routledge, 1998.

15. Humberto Mariotti e Cistina Zaugy, Diálogo: a competência do conviver (no prelo).
16. Linda Ellinor e Glenna Gerard, Dialogue: rediscover the transforming power of conversation, Nova York, John Wiley & Sons, 1998.
17. William Isaacs, Dialogue: the art of thinking together, Nova York, Doubleday/Currency, 1999.
18. Alfie Kohn, No contest: the case against competition, Boston, Houghton Mifflin, 1992.
19. Edward De Bono, Sur/petition: creating value monopolies when eveyone else is  merely competing, Nova York, Harper Collins, 1993.

20. Francisco Varela, Sobre a competência ética, Lisboa, Edições 70, 1995.
21. Humberto Mariotti, Organizações de aprendizagem: educação continuada e a empresa do futuro, São Paulo, Atlas, 1999.
22. Humberto Mariotti, Autopoiesis, culture, and society, www.oikos.org/maten.htm  (1999).
23. Michael Ray e Alan Rinzler, Eds., The new paradigm in business, Los Angeles, Jeremy P. Tarcher, 1993.
24. Robert Axelrod, The evolution of co-operation. Londres, Penguin Books, 1990. 
 

© Humberto Mariotti, 2000.

* Capítulo do livro O dragão e a borboleta: sustentabilidade e responsabildade social nos negócios. São Paulo: Axis Mundi/AMCE, 2000, pp. 265-282.

** Humberto Mariotti é Professor e Coordenador do Centro de Desenvolvimento de Lideranças da Business School São Paulo. Consultor em desenvolvimento pessoal e organizacional. Conferencista nacional e internacional. Coordenador do Núcleo de Estudos de Gestão da Complexidade da Business School São Paulo.

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